A SINA DA CAPA DE CHUVA
Antonise Coelho de Aquino
Nas refeições, reuníamo-nos em
família e naquele dia, já
atrasada para o trabalho, almoçava apressadamente, quando papai que ouvia o
noticiário do meio dia mostrando cenas de violência, resolveu
interromper o barulho da TV e questionar se eu sabia das histórias da capa de
chuva amarela de Tio Galegão. De início, estava desatenta, mas quando ele fez a
pergunta, parei alguns momentos e comecei a ouvir a narrativa.
A capa de chuva amarela que Galegão guardava na casa dele era
assombrada, com mã sorte para quem a usasse. Existia alguma força estranha que a perseguia. Quantas situações a vestimenta
já passou até chegar às mãos de seu tio. Pobre capa de chuva! E como veio parar
aqui no sertão, lugar de chuvas escassas, acessório sem utilidade para o nosso
calor insuportável?
Animado com minha atenção, papai seguia o relato. Parte do uniforme da
polícia para dias de chuva, ela havia sido de propriedade de um policial da
capital Pernambucana e já passara por várias situações de conflito. Da última vez, ao usá-la, numa tarde de chuva
em Recife, trocou tiros e acabou eliminando um delinquente menor de idade.
Houve repercussão do caso, por isso os familiares do policial quis desfazer-se
do objeto. Um parente do interior, estando na Capital, ficou impressionado com
a vestimenta e a pediu como lembrança.
No interior, o novo dono a expôs no telhado do bar. Os fregueses que
ali chegavam para tomar uma pinga ou comprar algum produto, logo interrogavam sobre
aquela exposição. Depois de alguns comentários maldosos, o proprietário
resolveu levar a capa de chuva para outro cômodo do estabelecimento, onde
guardava as caixas de bebidas e os estoques de sacos de feijão, farinha, fumo
em rodelas, carnes de bode secas estendidas e outros cacarecos.
No ambiente abarrotado de mercadorias, teve lugar de destaque. O dono do bar, entusiasmado, repetia aos amigos como recebera aquele modesto presente.
Levava-os para ver a capa de chuva e dizia que um dia teria oportunidade de
vestir. Estava esperando a chuva forte cair no sertão.
Como era um acessório sem uso no sertão, os clientes da venda se
admiravam com a exibição e as invenções criadas, mas sentiam um mau estar
diante do objeto.
Passados alguns meses, um empregado da mercearia, que tinha um jeito
meio esquisito, mas atendia com educação aos fregueses, foi encontrado
enforcado numa corda, com o olhar preso em direção à capa, pendurada nos
caibros do telhado. A atitude insana do enforcamento naquele depósito, quando o
dono havia saído para deixar uns produtos na vizinhança, logo ganhou
repercussão nas redondezas. Muitos vieram constatar o fato, saber de mais
detalhes sobre os olhos arregalados do empregado em direção à capa de chuva, a única
testemunha.
Ninguém esquecia o ocorrido, mesmo depois de algum tempo. Os vizinhos e fregueses, cada vez mais
assustados, fizeram cordões de rezas, acenderam velas na porta do bar e
suplicavam ao dono do bar que a capa de
chuva fosse retirada do depósito. O novo empregado nem queria buscar mercadoria
no estoque, a esposa passava o dia reclamando daquele amaldiçoado objeto e, até
as vendas diminuíram.
No auge da confusão, tio Galegão, morador do sobrado vizinho ao bar e um antigo freguês, veio conversar com o
proprietário da intenção em pedir emprestada a capa de chuva tão assustadora,
mas que lhe deixara com uma grande curiosidade.
Afinal, era a oportunidade de
usá-la numa próxima viagem a Salvador onde chovia bastante. Quem sabe tiraria a
má impressão do acessório....
O dono do bar não pensou duas vezes e lhe entregou a capa de chuva,
bradando:
- Seu Galegão, o Senhor sabe do
que ocorreu aqui. Se quer mesmo esta capa,
não será um empréstimo. Pode ficar com ela para sempre.
Enquanto conversavam, entraram no depósito e uma corrente de ar passou
pelo lugar, trazendo-lhes estranhos barulhos. O proprietário do bar se arrepiou
e suspirou:
- É a folha de zinco colocada no telhado. Estala frequentemente, ainda
mais em dias quentes. ‘Homem deixa de besteira. Dar esta peça será o
melhor a fazer. Mesmo não tendo realizado o desejo de usá-la’.
Tio Galegão estava satisfeito com o presente. Os amigos iriam se
assustar, mas com o tempo tudo voltaria ao normal. Nos churrascos, seria tema
para encompridar as histórias de Trancoso.
Na verdade, nem viajou, era um
pretexto a viagem de Salvador. Depois de colocá-la exposta em um dos quartos,
Tio Galegão passava horas a observá-la, toda imponente, sempre limpa, pendurada
num cabide nos caibros do telhado.
Como tinha manias estranhas, de aposentado, possuir aquela vestimenta
para guardar com as demais era um deleite. Seu passatempo era produzir objetos
com restos de madeira, ferro e escrever histórias num livro amarelado pelo
tempo. O velho sobrado possuía uma mistura de produtos antigos e artefatos,
excentricidades à parte.
Numa manhã de sexta-feira, Tio Galegão recebeu a visita de Tião, amigo
de farras que viera lhe pedir emprestada a capa de chuva, pois iria visitar parentes nos arredores de Pau Ferro,
localidade de Petrolina e queria se exibir com o acessório, pois estava com
jeito de muita chuva nos dias seguintes. Seria uma belezura vesti-la, pelo menos
uma única vez.
Tio Galegão retrucou, pensou bem e lhe disse:
- Leve, leve, mas já sabe das histórias desta capa, não é, homem?
Tenha muito cuidado. E me traga na segunda-feira logo cedo.
- Que nada, sou corajoso! Respondeu o amigo. Você inventa isso para
ninguém lhe pedir emprestado. Estou sabendo, viu?
O fim de semana transcorreu bem, embora Tio Galegão pensasse no objeto
emprestado. Teria feito a coisa certa? A
Capa era mesmo amaldiçoada?
No fim da manhã de segunda-feira, impaciente, sem notícias da capa,
ouviu o toque da campainha e foi abri-la. Era um colega do Tião que veio
trazê-la, enrolada em vários sacos, numa caixa. Aparentemente assustado, contou-lhe os fatos.
-Seu Galegão, o Tião não veio
deixar pessoalmente a capa porque está hospitalizado, desde a madrugada. Ele
levou uma surra dos cunhados, lá no povoado e está numa situação de fazer dó. O
Senhor sabe que ele apronta com a mulher. Mas
dessa vez, a família dela descobriu o feito e não deixou barato.
Pior... Engasgou-se para continuar a
história. Conta, deixa de enrolar, o que
aconteceu, homem - gritou Tio Galegão.
- O pior é que... o Tião estava vestido na capa de chuva. Ele chegou
todo animado em Pau Ferro, debaixo de uma chuva, mas nem reparou quando os dois
cunhados estavam numa tocaia à porta da
casa da sogra e lhe deram uma rasteira, com alguns golpes. O Tião já caiu desacordado.
Depois começaram a bater nele, sem
piedade. Se a esposa não o acode, gritando
aos irmãos, eles o teriam matado.
Enquanto ouvia o sucedido, Tio Galegão abria a caixa para ver o
estrago da capa de chuva. Algumas manchas de sangue, partes rasgadas, na
verdade, muito suja. Não se incomodou com o estrago. Sentia-se responsável pelo
ocorrido, apesar do Tião ser um ‘cabra’ irresponsável.
Depois de limpar a capa, deixou-a pendurada no cabide, no mesmo lugar
e trancou a porta do quarto com cadeado. Saiu cabisbaixo. Aquela situação lhe causara inquietação e dúvidas, um sentimento difícil
de explicar. Bem, depois decidiria o que
fazer com aquele objeto, ainda precisava visitar o amigo hospitalizado e
saber de mais detalhes.
- Papai, e o que meu tio fez da capa de chuva? Mudou a sina que ela tinha? Ainda está
no sobrado à espera de ser usada outra vez? Meu tio vai emprestá-la?
Sem responder à indagação, papai olhou para mim, sorriu
disfarçadamente e se levantou da mesa de refeições.
8 comentários:
Muito bom!
Muito bom!
Texto muito legal
Texto muito legal
Texto muito legal
Professora que conto gratificante de se ler! e que bacana a senhora ter prestigiado Petrolina "Pau Ferro" como parte do cenário do mesmo!
Muito bom,pelo gato de ter cidades vizinhas como parte do cenário!
texto maravilhosoo!
muito bem colocado e elaborado, chama muito atenção do leitor, muito bomm!!
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